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3 dias no CTI pediátrico (Parte 1 a 9 - compilado) - Crônicas e aprendizados

  • Tathi Pio
  • 17 de abr. de 2020
  • 9 min de leitura

Quando Caio tinha 3 meses, ficou mais de um mês doente, sendo 7 dias internado e desses, 3 no CTI pediátrico. Uma bronquiolite viral o deixou com dificuldade de respirar e, por ser tão pequenino, necessitou de cuidados especiais.


Era angustiante porque por ser uma doença respiratória e viral os tratamentos eram pouco eficazes. Só hidratar, usar alguns medicamentos que aparentemente em nada adiantava, observar e esperar, esperar e esperar...


A descrença dos médicos nos medicamentos dizendo que “o corpinho dele que deveria reagir” ao mesmo tempo em que nos desanimava, nos mostrou em quê colocamos nossa fé. Aos poucos nosso olhar saiu da reação dos remédios e foi para Deus.


De posse dessa premissa de fé (que só Deus pode) me perguntava: por que não curava o Caio? Em oração me veio a passagem do paralítico em Cafarnaum. “Para saberem que sou capaz de perdoar pecados, levanta-te e anda” (Mt 9, 6). Percebi nisso que Deus o curaria, mas aquele era o tempo em que estava fazendo coisas invisíveis, que nossos olhos não podiam ver. E que seriam confirmadas após a cura do nosso pequeno.


Por isso comecei a escrever. Colher todo aprendizado do invisível que poderia encontrar. Tinha pra mim que o quanto antes aprendesse, mais rápido o Caio seria curado. Foi uma motivação inocente a princípio, mas que me fortaleceu no desvendamento de riquezas do interior do ser humano e do coração de Deus.


Eu vi o coração de Deus.



Em retiro


Sinto-me em um retiro. Caio é o pregador e coordena as dinâmicas. Há momentos na capela que fica ao lado da entrada do CTI pediátrico, há momentos de deserto, tenho grupo de partilhas, tem comida boa, tem vigília e muita intercessão (Mosteiro das Beneditinas JF, Grupo Santos Anjos Itajubá, Grupo de Casais MUR BH, Amigos Mur, Canção Nova Minas, Carangola, MUR JF, Família, Ministros da Comunhão Itajubá, Grupo de Oração de Viçosa e amigos de vários lugares).


E Deus fala. E como fala...



Fiquei doente também


Enquanto estava no CTI com meu filho, creio que peguei o mesmo vírus dele. Fiquei com febre, diarreia e um pouco de tosse.


Apesar de meu corpo enfraquecido eu estava feliz porque era aquilo que carregava dentro de mim, nos anticorpos do leite materno, que poderia ajuda-lo.

Quanto mais doente eu estivesse, mais poderia ajuda-lo.


Vi nisso o mistério da cruz que cada um carrega para o fortalecimento de toda comunidade. É dom de Deus poder ajudar o outro quando já se passou pela mesma situação. Quem vive com Deus a cruz, extrai dela a força e sabedoria necessárias para passar por ela e ajudar o outro a passar também.



Cumplicidade dos acompanhantes


As janelinhas entre cada ala do CTI das crianças dá vista apenas para o acompanhante. A gente não consegue enxergar o paciente das alas ao lado.


É poético. Quando o bebê da ala ao lado chora, a única coisa que temos acesso é o olhar amoroso dos pais.


Não vemos o sofrimento. Vemos o amor.



Dona Maura


Ela já chegou diferente. Não parecia refém do lugar. Era autêntica, difícil até de explicar. É enfermeira plantonista do CTI do Hospital da Baleia. Ficou uma noite com o Caio. Noite onde tudo mudou dentro e fora de mim.


Nenhuma enfermeira conseguia fazer nebulização com o Caio, porque ele começava com um acesso de tosse horrível. Ela, com toda paciência, o esperou dormir e colocou a máscara de nebulização sem encostar. Deu muito certo. “Nem tudo é a ferro e fogo”, ela dizia. “Tem que ir no tempo dele. Tudo tem seu tempo abaixo do céu, tempo de plantar, tempo de colher...”


Ela se humilhava com sabedoria. Ficou alguns minutos somente segurando o bico do Caio para que ele pudesse ficar mais tranquilo. “Meus honorários de seguradora de bico são caros”, dizia ela rindo pro Caio. Virou a maca dele de costas pra TV geral do CTI porque o estava atrapalhando dormir; deu um jeito engenhoso de medir a pressão dele sem o acordar; deitou-o no meu colo pra ele se sentir mais protegido... e aos poucos o lugar foi tomando nova cara. A cara da esperança. Caio ia melhorando visivelmente.


Dona Maura possui o dom de diagnosticar momentos e resolver pontualmente as situações. Sim, tudo tem seu tempo abaixo do céu. Ela até teve tempo de tirar uma sonequinha (o descanso também é previsto por Deus).


Só ela conseguiu acalmar o menininho de 3 anos no leito ao lado que chorava de dor (ele tinha acabado de fazer uma cirurgia, além das fortes dores das reações da quimioterapia). “Se seu choro acordar os outros meninos, vou pegar todo mundo e colocar aqui em cima da sua cama pra você me ajudar a olhar.” Dizia com carinho.


Dona Maura muda o ambiente onde ela está. Está sempre presente como serva, mas não se deixa aprisionar. Ela não é a minha enfermeira e me dá espaço pra eu ser mãe do Caio.


Após a noite com Dona Maura, fiquei mais mãe. Assumi mais o Caio ao vigiar os remédios ou a forma como o manuseavam. Um lugar como aquele exige maturidade psicológica e espiritual.


Sabe, tenho pra mim que dona Maura não é sempre assim, disposta, feliz. Que bom. Porque nos estimula a sermos assim também. A escolha é dela. É nossa.


Engraçado. Uma enfermeira aqui tentou imitar a Dona Maura pra tentar fazer o menininho do meu lado se acalmar. “Vou trazer os meninos pra você olhar se não parar de chorar.”


Foi um desastre! rs

É... busquemos nossa dona própria Dona Maura interior.



Grupo de partilha


Lanchei com as mães do CTI algumas vezes. Momento único de partilhas, enriquecedor. Cada uma ia contando as dificuldades. Algumas histórias eram tão sofridas que ao invés de me motivarem, davam-me medo de passar pela mesma coisa. Sentia-me agraciada pelo caso do Caio não ser tão grave ao mesmo tempo em que temia a Deus. Um temor ruim. Situações tristes não me convertem, vejo um Deus distante e mal. Discernimentos e sabedorias colhidas do sofrimento me convertem.


Um dia partilhei na mesa sobre a passagem de Abraão e Isaac. Deus pede nossos filhos e nos devolve do jeito certo. Não tenho dúvidas de que Abraão foi um pai melhor depois de ter quase sacrificado seu filho. Dói muito. Mas é libertador saber que nossos filhos não são nossos. Caio e Maria podem pegar uma superbactéria que está no ar e morrerem no mesmo instante. Nunca depende de nós. Os pais são constantemente e eternamente pobres necessitados da misericórdia de Deus.


Uma moça partilhou que quando chegou no CTI com o filho, ela só chorava. Não entendia e questionava Deus porque ela estava passando por esse sofrimento. Um dia uma médica disse a ela o seguinte: “Que sofrimento? Que sofrimento você está passando? Você está bem, saudável, sem dores, no máximo perdendo algumas noites de sono e recuperando depois.” A partir daquele momento ela começou a cuidar do filho como uma outra pessoa. E não como parte dela. Parou de se angustiar e fazia de tudo pra aliviar o sofrimento daquele filho de Deus que nasceu de seu ventre. E ficou mais leve.


Como Maria suportou a cruz de seu filho. Sim, como Maria.



Maria duas vezes tiradora de acesso


Caio estava ofegante, com uma saturação (nível de oxigênio no sangue) não muito boa e os médicos e enfermeiras não liberavam a mamada todo tempo.. Sempre diziam “deixe ele descansar um pouquinho”. Passei dois dias me ordenhando quase todo tempo. Tirando leite e jogando fora. Já estava sobre o efeito de uma mastite e com dores.


De manhã, quando voltei do café estava uma enfermeira ao lado da maca do Caio e um pouco de sangue no lençol dele. Ela me disse que ele tinha tirado o acesso (é o que liga o soro de glicose a veia dele. Eu tinha visto quando colocaram, estava bem firme.), mas que iria recolocar e era pra eu sair da sala.


Obedeci e fui pra capela. Quando voltei, ele já estava dormindo.


A enfermeira veio ao meu encontro e disse que tinha colocado novamente, bem profundo e mais difícil de sair. Aproveitei pra tentar tirar uma sonequinha na cadeira quando de repente vejo a enfermeira perto da maca do Caio novamente com cara de estranhamento dizendo que ele tinha tirado novamente o acesso, “mas como? Estava bem preso” – dizia ela.


Caio nem chorava, não havia sangue no lençol, se ele tivesse tirado estaria chorando e sangrando.


Pois bem, a partir daí o médico pediu pra não recolocar e deixa-lo somente mamando no peito. E Caio ia mamando e melhorando, recebendo de mim tudo o que precisava. Anticorpos e aconchego do meu colo.


Deu a hora da visita e Gustavo veio nos ver. Contei a ele a história e ele me disse como sentiu a necessidade de entregar o Caio à mãe do céu, decidiu adiantar a consagração a Nossa Senhora que seria feita só no batizado. Assim, naquela manhã ele havia ligado para os padrinhos e esses foram a uma igreja fazer o ritual - tudo ocorrendo simultaneamente às saídas do acesso da veia do nosso pequeno.


E Maria duas vezes tiradora de acesso na veia, rogou por nós!



Caio vai pro quarto e intriga com outra mãe


Caio foi liberado pro quarto!


Tenho vergonha de assumir, mas a ida dele pro quarto não foi somente alegria. Desinstalou-me novamente. Ele ficaria sem as máquinas, vão cessar as orações e mensagens de incentivo no celular. Seria um novo caminho mais solitário. Não poderia excluir isso das minhas anotações. A gente se acostuma a tudo. Até com o que é aparentemente ruim, ou o que de bom conseguimos tirar do que é ruim. Ser humano é estranho.


Conversei no corredor com a mãezinha do Matheus do CTI. Ela disse que havia piorado. Ele tem leucemia e pegou pneumonia. Ela sofre muito. Estive no CTI com meu filho, mas não sei dimensionar sua dor. Cada um traz uma dor, alegria e sabedoria específica. Que riqueza.


Mas ela me contou ainda que havia uma mãe (mãe de uma menina de uns 10 anos que está no CTI há alguns meses com câncer no cérebro) que estava falando mal de mim para as outras mães no dia anterior.


É que resolvi não almoçar junto com as mães do CTI pra sentar ao lado da Lúcia, mãe do menininho que fica no leito ao lado do Caio. Ele gritava muito e as enfermeiras (exceto a Dona Maura) não estavam conseguindo lidar com ele. Falavam: “Você chora muito!” “Responde, porque está chorando? Você sabe falar, fala!” As outras mães estão reclamando de você porque não deixa as outras crianças dormirem.”


Lúcia normalmente sentava isolada e coloquei minha bandeja ao lado dela para falar que nós não estávamos chateadas com ela. Que entendíamos que o filho sofria, por isso gritava. E tentei tranquiliza-la dizendo que ela já estava sofrendo demais com ele pra ter de se preocupar ainda com as outras mães...


A conversa foi boa.


Mas parece que a tal mãe da menina de 10 anos se incomodou de eu não ter sentado com elas, fazendo uma mini intriga com as demais mães.


É... mesmo lá os limites são provados. Deus nos desinstala onde quer que estejamos.


Tenho séria dificuldade com conflitos e fiquei cara a cara como a Tathi pequena e medrosa de sempre.


O limite dela tocou o meu e isso foi como um choque de realidade pra mim. Depois disso me fechei um pouco.


Onde quer que eu esteja eu também serei eu. E como ela, lidarei com o espinho na minha carne. Este espinho nos rebaixa ao mesmo patamar de pecadoras... Sejamos vigilantes.


Fiquei feliz de ter saído do CTI, Deus mudou meu cenário e me tirou novamente da rotina.


Fiz nesse dia uma oração diferente: pedia não pelos pacientes, nem pelos pais, mas por todos que se encontram sem vigilância nos hospitais. Lá somos tão estimulados a olhar pro corpo que a fragilidade do espírito passa muitas vezes desapercebida.

Constatei, afinal, que o sofrimento por si só não santifica, mas o quanto amamos na dor.



Não se apartem


Recebi uma mensagem da Soninha, uma senhora amiga fundadora da Comunidade Ecce Me que, rezando pelo Caio, disse que nós, eu e o Gustavo, teríamos que ter zelo para não nos apartarmos. Achei a principio estranha essa preocupação porque as mensagens que eu normalmente recebia eram votos de melhoras para o Caio. Mas com o tempo consegui entender perfeitamente o que dizia. Eu estava me sentindo muito distante do Gustavo e nem percebi. Perigo iminente.


Gustavo e eu estávamos vivendo dores diferentes. Eu no CTI com o Caio e ele tentando lidar com as coisas de casa, além de cuidar da Maria em uma séria crise de bronquite, sem poder ir pra escolinha. Mas ambos na mesma missão.


Sabe, a gente não deve subestimar ou valorizar a dor do outro. Quem passa um tempo com o filho no CTI não é mais santo que quem passa um tempo com ele em casa, saudável. Se fizerem o que deveria ser feito estão no mesmo caminho de santidade. Deus tem suas medidas. Eu estava noites sem dormir, mas creio que Gustavo sofreu mais e ele acha o contrário. Não importa. Quem sofre é digno de compaixão e respeito do outro.


Vi no CTI que a dor e sofrimento, ao mesmo tempo, que nos jogam ao chão, muitas vezes pode virar vaidade cristã.


No quarto do hospital eu descansava mais do que quando estava no CTI, mas estava estranhamente mais cansada. Sábia Soninha, bem havia dito que o cansaço vem depois...


Creio que Deus o curou. Até hoje não teve mais nenhuma crise respiratória, mas confesso que já usei muito a medicação para evitar uma possível piora. É, ainda vacilamos na fé, mas isso faz parte do processo de aprendizado de sermos pais e, simultaneamente, filhos de Deus.


Sabe, dá saudade dessa época no hospital. Não da dor, dessa eu tenho medo ainda. Mas de perceber, a cada segundo, o olhar de Deus pra mim e em mim.

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